17 de julho de 2009

Três anos na Índia





Fique hoje com o depoimento do piloto Marcel Mendes:

Chegamos eu, esposa Lourdes e filha Flávia na Índia em 2006 e já nos estabelecemos em Nova Delhi. Realmente foi uma decisão muito difícil de ser tomada, uma vez que estávamos rodeados de parentes e amigos no Brasil, mas com a quebra da Varig não tínhamos mais condições de permanecer e os últimos meses foram de muito sofrimento, emocional e financeiro. Estávamos praticamente quebrados devido a falta de salário e nenhuma indenização.

Só conhecíamos a Índia por programas de TV, filmes e fotos em revistas e enciclopédias. Tínhamos uma idéia muito conservadora e romântica sobre o país de Gandhi. Eu a imaginava como um país de miseráveis onde grande parte da população vivia resignada fazendo yoga.

Bombay (Mumbai), como a nossa porta de entrada, nos deixou realmente impressionados, mas quando em seguida viemos para Delhi, ficamos mais otimistas com aparência mais limpa da capital indiana.

Arrumamos um confortável apartamento para residir em Gurgaon, que já é uma outra cidade mas que faz parte da Grande Delhi ou NCR. Gurgaon destoa um pouco do resto da Índia por estar passando por um período de crescimento vertiginoso. Bairros planejados, arranha-céus vitrificados, hotéis luxuosos e até uma churrascaria brasileira (isto mesmo, uma churrascaria na Índia), embora caríssima. Mas junto com toda esta opulência existe concentração de miséria, principalmente de pessoas vindas das mais diversas partes da Índia para tentar participar desta festa de crescimento econômico, trabalhando em construção civil e prestação de serviços. Claro que isto acaba não funcionando muito bem já que o país não se preparou para este crescimento alucinado e sofre-se muito com a falta de infra-estrutura, tais como grande aumento no consumo de água, eletricidade e como se livrar do lixo. Falta de água, apagões e fumaça são parte da rotina.

Fomos adaptando nossos corpos gradualmente e inúmeras diarréias e idas a hospitais depois, já não pensávamos mais nisto, tínhamos, claro, uma micro farmácia em casa com remédios brasileiros para qualquer eventualidade. Passamos então a nos preocupar com a mente e contratamos um professor de Yoga indiano. Mister Shukla vinha duas vezes por semana para nos ensinar alongamentos e respiração. No começo não acreditávamos muito, mas com o tempo fomos sentindo os benefícios, só que o apelidamos de “Chéven” sem ele saber, pois tinha um sotaque peculiar que o impedia de pronunciar a letra S e acabava trocando por X. Então quando contava nossos exercícios falava “Chiks, Chéven”, Eight, etc.

A Lourdes e a Flávia logo se matricularam em uma escola de inglês e eu saía para voar 6 dias por semana por toda a Índia. Conhecemos algumas pessoas na embaixada do Brasil durante uma recepção ao presidente Lula, que facilitaram bastante nossa estada em Delhi.
A Flávia se matriculou na Universidade de Nova Delhi em uma das vagas reservadas para estrangeiros, mas não tem muito boas lembranças da época que ficou por lá. Aproveitando este assunto passarei a descrever minhas impressões a respeito do comportamento e way of life que observei entre o povo indiano das mais diferentes castas.

A Índia tem mais de 1 bilhão de habitantes numa área que é do tamanho da Amazônia sul americana. A maior parte do país se encontra em um relevo praticamente baixo, mas no extremo norte eleva-se como uma gigantesca muralha formada pelo Himalaia. O sul é quente e úmido o ano todo e o extremo norte tem temperatura agradável no verão e neve no inverno. No meio fica o inferno. Calor, árido, frio, miséria e onde está a maior parte da população. Tive contato com todos estes indianos e posso dizer sem dúvida que os do sul são os melhores para conviver.

São mais baixos, de cor mais escura, muito atenciosos e de fácil comunicação pois são mais fluentes em inglês apesar de terem inúmeros idiomas regionais (tamil, telugo, maleyalam, Karnar, etc.). Os indianos do norte, principalmente os de Delhi, são de difícil convivência e desconfiados de estrangeiros. Os de Mumbai assim como também os de Calcutá são mais acessíveis e bons de fazer amizades e trocar telefones. Tive contato e fiz boas amizades com os Sikhs do Punjab, apesar de gostarem de beber bastante, são muito bem informados em assuntos gerais.

Devido a pouca abertura dos indianos de Delhi, nossos amigos estavam praticamente entre a comunidade brasileira. Nos víamos com certa freqüência e sempre provocávamos algum encontro ou festa para celebrar alguma coisa, nem que fosse um encontro para somente saborearmos uma suculenta feijoada preparada pela Lourdes com carne de porco contrabandeada por nos em nossas viagens ao Brasil, uma vez que comer porco indiano é um risco altíssimo.

Nosso contato com indianos se resumia ao ambiente de trabalho, escola e academia de ginástica (mesmo lá, só com os instrutores já que os indianos comuns nunca nos dirigiram uma palavra). Fazíamos também uma reunião religiosa cristã com um grupo de indianos cristãos muito pobres em um vilarejo de Gurgaon, a maioria deles eram dos estados de Orissa, Jarkand e Assam (nordeste).

No ano de 2008 houve uma séria perseguição a cristãos na Índia, então resolvemos fazer nossas reuniões de oração em nosso apartamento por medida de segurança. Aqueles indianos começaram a freqüentar a nossa residência e minha esposa também começou a ensinar música para algumas moças evangélicas que vinham duas vezes por semana para praticar. Percebíamos que davam muito valor a estes eventos e sentiram muito quando comunicamos que deixaríamos a Índia.

Apesar de saber que algumas pessoas defecavam nas ruas, confesso que nunca vi, agora urinando, isto eu vi muitas vezes! Fazem isto de uma maneira tão natural e nem se preocupam em se esconder atras da moita, costumam urinar na frente da moita mesmo, com todo mundo vendo e não dando a menor bola. O costume de homens andarem de mão dadas ou só com o dedo mindinho também já não nos causava espanto. Perguntei a vários amigos pilotos indianos sobre este comportamento e eles se dividiam em dizer que eram simples amigos ou poderia ser realmente um comportamento homossexual, uma vez que falta mulheres na Índia devido a seleção que as famílias costumam fazer, mesmo sob as vistas grossas do governo. Quando ficam sabendo que estão grávidas de meninas, as grávidas dão um jeito de abortar (legalizado na Índia), se deixam nascer, acabam não dando a devida atenção e as meninas acabam morrendo de inanição ou de uma das inúmeras doenças infantis. O Mishra, que trabalhava de motorista para minha família já tinha uma filha, quando nos avisou todo feliz que sua esposa estava novamente grávida. Ele pertence a casta dos brahmanis, ou alta casta que seguem todas as tradições da religião hindu. Seu casamento foi arranjado, como é o costume na Índia, mas sua esposa e a sua mãe vivem as turras. Quando nasceu a segunda menina, ele apareceu para trabalhar muito triste, preocupado em como dar a notícia para a sua mãe que mora em Varanasi, e também em como fazer para criar e pagar dotes para as meninas casarem quando se tornarem adultas, já que ele é um homem pobre. Não deu outra, sua esposa começou a negligenciar o bebê e dois meses depois ele me avisou que a menina estava muito mal. Fui com a Flávia até o local onde ele morava e fiquei impressionado com o estado da menina e a resignação da mãe da menina. Ela estava com uma forte infeção digestiva e também nos olhos. Perguntei se estavam dando alguma medicação e eles me mostraram um vidro de xarope para tosse. No outro dia cedo passei lá novamente para levarmos a menina a um hospital, quando vi as condições precárias do hospital, imundo, camas ou macas imundas, atendente imunda e médica imunda também. Vi que ela tinha o nome bordado no avental e, acreditem ou não, seu nome era Doctor Suja. Peguei a menina e caí fora dali, fui para um hospital mais decente. Pagamos um valor não muito alto para nós, e uma médica de plantão já foi dizendo que a menina deveria ficar internada. Após 3 dias fomos buscá-la e ela já respirava e se alimentava melhor e até sorriu para mim, foi muito gratificante. Agora ela já está com mais de um ano e acho que já dá para embalar pela sobrevivência. Eu acabei ficando muito respeitado no local onde eles moram e fui convidado pelo senhorio do local para uma recepção em sua casa onde nos serviram refeição, tentei declinar temeroso no início, mas para deixá-los contente fechei os olhos e mandei ver. Me levaram nos meses seguintes para festas de casamentos da parentada (na Índia estas festas duram em média 5 dias) e sempre me ajudaram quando eu tinha algum problema mecânico com meu carro ou seguro. Fizeram questão de me visitarem para se despedir de nós as vésperas de nossa saída da Índia.

Existem muitos ricos ou novos ricos na Índia, porem eles nos ignoravam talvez por sermos estrangeiros. Mal respondiam um cumprimento de saudação. Tratavam muito mal também os funcionários em cargos mais humildes. Os porteiros do condomínio corriam em minha direção quando eu passava para virem me cumprimentar ou simplesmente acenar, alguns ficavam impressionados quando eu os chamava pelo nome. Os outros moradores indianos sequer os olhavam diretamente e quando o faziam era para rosnar alguma palavra. Tínhamos também muita paciência durante a revista para entrarmos no Shopping Center. Vários segurança vinham nos apertar a mão pois sempre colaborávamos e facilitávamos o trabalho deles. Claro que as vezes enchia o saco, mas com tanta ameaça de bomba que tem por lá, era melhor seguir os procedimentos.

Ficaremos com saudades de nossos amigos brasileiros: Sandra, Valéria, Bob e Priscila (que nos deram muita ajuda, apoio e muita alegria). Todas as amigas brasileiras que minha esposa e filha (que sempre faziam algum evento só para se verem e compartilharem), o pessoal da embaixada brasileira (Arlete) e também, principalmente o pessoal da banda do Bob, da embaixada do Estados Unidos (nos proporcionaram momentos inesquecíveis).

Escrevo agora de Muscat, Sultanato de Oman. Estou aqui para enfrentar os novos desafios que me serão apresentados e, quem sabe um dia contar para os netos e passar toda a experiência de vida adquirida. Isto não tem preço.

Um abraço.
Marcel
























































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