21 de março de 2008

Ibira na India - Parte 9

(Fila para entrar no Taj Mahal, que durou quase uma hora por causa do desrespeito dos indianos que furam fila)
(Estrada Nacional, perto de Kolhapur, Maharashtra)


Hoje o meu relato nao sera um relato. Ao escrever meus depoimentos passados deixei de lado alguns detalhes, simplesmente porque esqueci de conta-los. Nao sao muitos, mas sao coisas muito importantes de se contar a respeito da vida indiana, do cotidiano e da cultura desse pais. Algumas outras coisas eu cheguei a comentar no primeiro e/ou segundo relato, mas que se repetiram ao longo dos meus primeiros 17 dias de viagem, quando encerrei meu oitavo depoimento. Entao algumas dessas coisas eu tambem apenas repetirei para que voces nao se esquecam que essas coisas acontecem rotineiramente na vida indiana comum.

Bom, vou comecar ainda pelo aeroporto de Londres, onde fiz escala para vir a India. Minha viagem a esse pais comecou, na verdade, la, no Terminal 4 do aeroporto de Heathrow. Ao descer no terminal, onde ficaria cerca de duas horas e meia, me assustei com a quantidade de indianos por todos os lados. Nao so havia indianos andando para todos os lados, embarcando para todos os destinos, mas tambem em todas as lojas do terminal (que parecia um shopping) havia indianos como vendedores e/ou gerentes. Foi um absoluto susto inesperado – eles realmente dominam o Terminal 4.

Depois de ja estar aqui na India e passar pelo susto do primeiro dia de Mumbai, minha primeira situacao embaracosa em termos de diferencas culturais foi na vila de Parshuram, na casa do Sankalp. Nao tem a ver com comer com a mao no chao, tomar banho de baldinho ou fazer coco no buraco e limpar-se com a mao. Tem a ver a pos-refeicao. Na primeira noite em Parshuram jantou conosco a vizinha do Sankalp, uma senhora de cerca de 60 anos ou mais. Ao terminarmos a janta, ela me solta um belo de um arroto. Foi o primeiro que ouvi, e foi extremamente dificil de segurar a risada. Ainda por cima porque ali estava tambem minha amiga brasileira – eu sabia que se eu olhasse para a cara dela eu morreria de rir. Numa outra oportunidade a cena se repetiu e, inafortunadamente, olhei pra minha amiga. Eu sabia, nao podia olhar pra ela. Nos dois percebemos que nao podiamos ter olhado um ao outro e, alguns segundos passados, falamos qualquer coisa para nos dar qualquer motivo para que caissemos na gargalhada. E caimos. A situacao foi bem embaracosa, mas acho dificil que tenham desconfiado o motivo de nossa gargalhada. E depois quando ouvi umas, digamos, flatulencias... embora em menor intensidade que os arrotos, os famigerados “peidos” tambem acontecem...

Ainda em Parshuram presenciei outra cena que me chocou um bocado, e que vi pelo resto da India, em todas as casas. A limpeza do chao eh feita com um ramo de alguma palha, mas geralmente eh sem um cabo longo, o que obriga a mulher (porque praticamente somente elas fazem isso) ficar absolutamente encurvada. Nao so bastasse isso, ate hoje nao vi rodo aqui na India, o que significa que, quando passam o pano molhado no chao, fazem com os proprios bracos, com as pernas esticadas e as costas dobradas para frente. Nao eh a toa que eh muito comum encontrarmos idosas completamente corcundas por aqui.

Depois, ja em Ashta, um dia vimos num barranquinho um cranio humano com dois ossos cruzados na frente – aquela imagem famosa dos piratas – e uns potes com algumas coisas. Era uma cena bem semelhante a nossa macumba. A explicacao que me deram daquilo coincidiu exatamente com os objetivos da macumba, o que nao esperava haver na India. Apenas depois que vim a saber que isso esta relacionado a uma manifestacao do Tantra.

Outra coisa que ja falaram em depoimentos varios por aqui, mas que vale a pena repetir, eh o tal balanco de cabeca indiano. Ao dizer sim, balancam a cabeca para os lados, mais ou menos como nosso nao, mas mesmo assim diferente. Quanto mais ao sul mais intenso eh esse balanco. Em alguns momentos isso pode gerar confusao, mas no fim das contas ate a gente acaba pegando o jeito. Alias, recomendo a todos que forem passar mais tempo na India a se adaptarem com os jeitos, gestos e sotaques locais; so assim eh possivel ser menos enganado e mais compreendido. E a viagem fica muito mais divertida.

Como rodei por muitos lugares, seja sozinho, seja com amigos locais, seja por vilas inexploradas, seja por locais turisticos, vi muitas estradas diferentes. Mas todas, absolutamente todas, nao merecem reclamacoes. Em muitas estradas enfiadas no meio do nada, absolutamente nao turistica e que so servem para os agricultores pobres locais, havia asfalto em perfeitas ou boas condicoes. As estradas nacionais sao bem conservadas, embora nao tao largas e boas quanto algumas do estado de Sao Paulo, no Brasil. Algumas dessas estradas, inclusive, sao de concreto. Nas cidades nao posso reclamar das ruas. De forma geral o asfalto eh excelente e muitas vezes eh tambem de concreto. Claro que ha muito transito nas cidades maiores, mas nada muito diferente de Sao Paulo. Mumbai eh disparado a pior cidade da India em termos de transito, mas ainda assim insisto, nao esta longe de Sao Paulo. Embora o transito possa parecer mais caotico ainda que Sao Paulo, o que ocorre eh que eles se entendem e as coisas acabam fluindo. O problema eh para nos ocidentais que nao entendemos e achamos ser caotico e absurdo.

Eu tinha reparado logo no comeco que os monumentos historicos nao eram muito bem conservados, ou que a conservacao era feita de maneira diferente da que a gente esta acostumado no ocidente. Isso eh fato e fui ter certeza quando cheguei aqui em Delhi, cidade com inumeros monumentos. Deixarei para falar mais sobre isso nos relatos que se seguirem, ja sobre minha estada em Delhi.

So pra relembrar, praticamente em todas as casas indianas deve-se tirar o sapato. Dependendo da familia e da tradicao, se dermos dois passos dentro da casa com sapatos estaremos cometendo uma tremenda ofensa. Em relacao aos templos, nao ha excecao; seja templo hindu, seja sikh, muculmano ou budista, em todos deve-se tirar os sapatos. Nesses casos, eh de grande valia vir para a India com uma papete, justamente para essas situacoes todas que se repetem sempre. Eh um tanto desagradavel, e chega a ser ate um mico, ficar desamarrando o sapato, tirando a meia, e depois colocando a meia de volta e amarrando o sapato em cada uma dessas situacoes.

Outra coisa importante: ao vir a India todos devem estar preparados para serem revistados em todos os lugares possiveis. Isso comecou comigo no aeroporto e so vai terminar no aeroporto de novo, na hora de ir embora. Tem lugares, templos muito importantes, por exemplo, que sao feitas tres revistas na gente, alem de termos de abrir malas e mochilas que estivermos carregando. Ja fui revistado em entrada de fortes, templos, mesquitas, ruinas, metro, cinema... tudo por causa do terrorismo que hora ou outra resolve atacar por aqui...

Agora vou dizer uma coisa importante que pode ser dificil para alguns escutarem. Como eu disse logo no meu primeiro ou segundo relato, ao vir a India eu decidi que estaria aberto a experimentar tudo aquilo que viesse no meu caminho, procurando viver a verdadeira vida indiana e assim (tentar) compreende-la. Eu de fato fiz o maximo que pude neste sentido, e continuo fazendo ate hoje. Percebi que vir a India como um turista normal faz nao eh suficiente para revelar o que eh este pais e este povo – e dai os comentarios grossos e preconceituosos sobre a India acabam facilmente surgindo. Ficar em hotel cinco estrelas, andar sempre de taxi e ir somente em lugares realmente turisticos, a la Taj Mahal, vai mostrar uma India bonita para turista ver, mas o resto da sociedade em volta nao se esconde. Por isso esse pais choca tanto, porque as pessoas vem para consumir monumentos e nao para entender uma sociedade milenar, por mais estranha que possa parecer pra gente. Ficar numa bolha pode ser confortavel, mas nao nos da o direito de criticar. E afinal, eles tem no minimo 5 mil anos e nos 500. Eles tem 1,2 bilhoes de pessoas, enquanto que a populacao do Brasil eh apenas a virgula deles.

Por fim, apenas gostaria de dizer a respeito de uma coisa que fui obrigado a me adaptar, mas com muita relutancia e ate hoje fico triste com isso. O indiano comum eh muito mal educado; mesmo que seja ele bem educado, e conosco seja muito atencioso e respeitoso, socialmente ha muito desrespeito. Nao se fala obrigado e por favor, por exemplo, mas isso eh o de menos. Em locais em que deveriam haver filas elas simplesmente nao existem porque todos querem chegar na frente; nao se trata nem de furar fila (o que tambem acontece), mas o que ocorre eh que todo mundo vai na frente ao mesmo tempo. O resultado eh que nos, ocidentais, tentando esperar a nossa vez, acabamos esperando o dia inteiro se tambem nao nos metermos na frente dos outros, desrespeitando ordem, genero e grau. Ate hoje ainda reluto comigo mesmo, mas eh inevitavel nao ser como eles nesses momentos se eu realmente quero aproveitar as coisas da India. Isso ocorre tanto em locais como metro, quanto em locais como templos extremamente sagrados.

Om Shanti Om

7 comentários:

  1. Então Ibira,"em terra de sapos, de cócoras com eles."
    Bjo. Verônica.

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  2. San querida, O Ibira eh tao educado!!! Cuidado com os maus habitos quando voltar para o Brasil viu???!!! Agora serio, muito interessante toda essa experiencia do Ibira. Adorei ler todos os relatos.Thx a bunch! Beijao, OM SHANTI Lana.

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  3. nossa sandra,lendo seu comentário também dei muita guargalhad pq passei por essa situação,quando eles vem para o Brasil para algum evento tive a oportunidade de almoçar com uns 2 indianos e um deles deu uma gafes dessa de arrotar ,mas ele olhou para mim e pediu desculpa acredito q ele já sabia q aqui no Brasil é falta de educação....bjs sandra namastê!!!!
    Giseli...

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  4. Bem, eu adoro esses relatos em geral, ms tenho q dizer q os escritos do Ibirá estão interessantíssimos, porque ele conseguiu partilhar a experiência de vida dos indianos, mas mantendo um distanciamento crítico importante qdo faz seus relatos. Ele conseguiu livrar-se de uma visão etnocêntrica e enxergar aquela realidade não com os nossos olhos ocidentais, ms tentando aproximar-se o máximo possível do que seria entender a realidade indiana com uma visão oriental... isso é de dar inveja a qualquer antropólogo bem gabaritado, rs!
    Ibirá, parabéns pelo seu desprendimento, especialmente pq considero essa coisa do etnocentrismo muito perigosa, pq faz crer na aparente superioridade de alguns grupos étnicos, sociais e culturais em relação a outros, quando na realidade o que existem são singularidades que precisam ser entendidas no contexto em que estão situadas.

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  5. Belatrix...

    Vc falou tudo e mais um pouco....

    Om Shanti

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  6. Adorei os relatos Ibira...beijos para você.Tudo de bom para você.

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  7. Ibira ... gostei muitissimo do seu relato. todos eles são muito reais e neles posso enxergar a India que naõ conhecemos ...
    claro que é de assustar um otro universo que nos parece inóspito e cruel por vezes ...
    mas acho que é fundamental sair do nosso olhar comum e deixar-se invadir ...
    acredito que não deva ser nada fácil ... é um aprendizado ...
    grata, gratissima por compartilhar as tuas experiências ...
    abraços
    e paz!
    jessica vega. campinas - brasil-

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